terça-feira, 15 de setembro de 2009

A menina de vermelho

Quem já assistiu “A Lista de Schindler” vai entender esse texto. Quem ainda não viu, espero que também entenda.

O filme se passa na Polônia, durante a Segunda Guerra Mundial. É todo feito em preto-e-branco. Ou melhor, quase todo. A introdução e o encerramento são em cores. E, em outras duas cenas especiais, a cor também aparece. Para mudar a história.

Obviamente, o uso delas, das cores – por Steven Spielberg – é proposital. O preto-e-branco representa o mundo da forma como Oskar Schindler o via. Sem choque, comum. Como se a brutalidade cometida pelos nazistas fosse natural.

Já o vermelho da roupa da menina é um divisor de águas. Ele se destaca, em meio a uma multidão de judeus, para deixar claro que aquilo chamou a atenção de Schindler. Foi aquela menina que fez com que o empresário ganancioso voltasse a enxergar a realidade. E, consequentemente, salvado mais de mil pessoas da morte.

“Quem salva uma vida, salva o mundo inteiro”. Essa é a frase que define o filme. E o que aconteceu nele – na essência – se repete todos os dias.

Quem nunca viveu alguma situação triste e passou a enxergar o mundo em preto-e-branco? Tudo parece sem graça. Nada vale a pena. E você passa a querer, unicamente, poder voltar no tempo. Até aquele tempo em que havia motivo pra tudo.

Eis que aparece a “menina de vermelho”. Ela não precisa, necessariamente, vestir vermelho. Pode ser verde, branco, amarelo, preto. Tanto faz. O que importa é que, por algum motivo, ela mexe com gente. Nos dá um grande chacoalho. E esse contraste nos faz enxergar todas as cores novamente.

Em alguns casos, a “menina de vermelho” nem precisa ser uma menina. Pode ser um velho amigo. Um novo amigo. Um desconhecido. Pode nem ser uma pessoa. Ser apenas uma frase lida em uma revista. Um filme.

A “menina de vermelho” pode parecer um acaso. Pode surgir por acaso, da forma mais improvável. Mas o certo é que nada mais será como antes. Ela chega para mudar uma vida, o mundo todo. E por mais que a força dela possa assustar – assim como a constante presença dela, mesmo quando ausente – é um segredo que vale a pena desvendar. Afinal, nada é em vão.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O Anjo Mau

A minha memória é bem falha. Tem espaços e mais espaços em branco. Mas desse dia eu me lembro bem – afinal, motivos não faltam.

Estávamos na casa da Imatra, uma amiga chilena da minha mãe, que havia morado com a gente por um tempo. Enquanto as duas conversavam, a diversão das crianças era brincar no beliche. Eu devia ter 4 anos. Mesma idade do Davi, filho da Imatra. Meu irmão Guilhermo e minha irmã Marina completavam o time.

Nossa tarefa era simples. Escalávamos o beliche por um colchão, que estava apoiado entre a cama e a parede. E, lá do alto, pulávamos para o chão. Com o passar do tempo, cada um foi tentando um salto diferente, mais arriscado. E de que vale isso sem a aprovação, orgulhosa, de um adulto?

Acho que foi exatamente isso que o Davi pensou. Na vez dele, tentou chamar – em vão – a atenção da mãe. “Mãe, vou saltar! Olha aqui!”. Como a Imatra não olhou, ele retardou o salto. Eu era o próximo na fila, e comecei a ficar irritado. Por isso, quando o Davi finalmente decidiu pular, eu decidi dar um ‘empurrãozinho’. Nada tão forte, mas o suficiente para que ele desse uma cambalhota no ar, e caísse de cabeça no chão. Fim da noite!

Nesse ponto, minha memória ganha um novo espaço em branco. E retorna apenas dias depois, para um breve diálogo. “Mãe, o que é traumatismo craniano?”, perguntei. “É como se o Davi tivesse rachado a cabeça, Julio”, ela respondeu. “Mas agora ele já está bem, não vai morrer. E sabe o que ele disse pra Imatra? Que ele só caiu porque você o empurrou!”. “Não, mãe. Não fiz nada, eu juro!”.

Enfim, o Davi sobreviveu. E graças a minha resposta rápida, escapei de levar umas palmadas.

Mas anos mais tarde, não teve jeito.

Aos 7 anos, eu tinha ciúme do meu irmão, pois ele sabia desenhar, e eu não! Certo dia, descobri um símbolo que eu conseguia reproduzir perfeitamente. Era minha chance de provar que eu também tinha esse dom. Só faltava um lugar para desenhá-lo, que chamasse a atenção.

Após pensar um pouco, decidi. A ‘tela’ da minha ‘obra-prima’ seria a boneca da minha irmã. A principal delas. Com a caneta em mãos, desenhei aquele símbolo duas vezes: uma na testa e a outra na perna da boneca. Era simples. Bastava fazer uma espécie de cruz e, em cada uma das quatro pontas, fazer outro risco, sempre para o mesmo lado.

Obviamente, minha mãe não gostou da minha ‘veia artística’. Apanhei, e muito. Ela me bateu por ter marcado, para sempre, a boneca preferida da minha irmã. E também me bateu pelo símbolo que eu havia desenhado. Quanto à boneca, fui réu confesso. Aceitei as palmadas. Mas quanto ao símbolo, não. Afinal, que criança, aos 7 anos de idade, sabe o que significa uma suástica? Eu nem sabia o que era o nazismo!

Certas desculpas acabam com o tempo. Aos 14 anos, eu já sabia o que era o nazismo. Também já conhecia o significado da suástica. Mas, mesmo assim, ainda era capaz de provocar pequenos ‘holocaustos’. Era uma época de desentendimentos entre eu e a Rose, que trabalha em casa há 15 anos. E percebi que, todos os dias, ela tirava minha garrafa com água da geladeira, para colocar no lugar a mamadeira da filha dela, a Joyce – na minha cabeça, um ato para me provocar.

Eu precisava agir, e fui rápido. À noite, abri a mamadeira e despejei, no leite, um pouco de pimenta. Não a pimenta em si, mas o óleo dela. E devolvi à geladeira.

Pela manhã, na escola, fui contar minha façanha para meus amigos. “...daí, quando ela for provar o leite, pra ver se está quente, vai tomar toda a pimenta!”. Foi aí que um dos meus colegas me alertou: “Julio, se o leite está na geladeira, é óbvio que não está quente. Ela vai dar direto para a filha”. Entrei em pânico. “Se a menina não tem nem 2 anos, você vai matá-la!”, ele completou, aumentando meu desespero.

Corri como um louco para o orelhão da escola. Liguei para casa, mas ninguém atendeu. “Caramba, já são quase 10 da manhã. A essa hora, a Joyce deve ter tomado o leite! Devem estar todos no hospital”, pensei.

Felizmente, não foi isso que aconteceu. O óleo da pimenta não se misturou ao leite, e quando a Rose pegou a mamadeira, viu que tinha algo errado. A Joyce estava salva. E eu levei apenas uma bronca – aos 14 anos, as palmadas já eram coisa do passado.

Esses três fatos são apenas alguns dos ‘atentados’ que provoquei. De alguns outros, já me esqueci. E certas histórias, como a de quando bombeiros e polícia foram chamados em casa, por motivos distintos, num mesmo dia, valem um post sozinhas.

Com histórias como essas, vinte e sete anos já se passaram. Nesse tempo, fiz algumas coisas que poderiam ter dado muito errado. Aliás, nunca me perguntei por que não deram. Que tipo de força salvou o Davi e a Joyce? Não sou religioso. Não acredito em anjos. Mas, felizmente, aqueles que protegem as pessoas que estão ao meu lado são muito – mas muito – fortes!