segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O Anjo Mau

A minha memória é bem falha. Tem espaços e mais espaços em branco. Mas desse dia eu me lembro bem – afinal, motivos não faltam.

Estávamos na casa da Imatra, uma amiga chilena da minha mãe, que havia morado com a gente por um tempo. Enquanto as duas conversavam, a diversão das crianças era brincar no beliche. Eu devia ter 4 anos. Mesma idade do Davi, filho da Imatra. Meu irmão Guilhermo e minha irmã Marina completavam o time.

Nossa tarefa era simples. Escalávamos o beliche por um colchão, que estava apoiado entre a cama e a parede. E, lá do alto, pulávamos para o chão. Com o passar do tempo, cada um foi tentando um salto diferente, mais arriscado. E de que vale isso sem a aprovação, orgulhosa, de um adulto?

Acho que foi exatamente isso que o Davi pensou. Na vez dele, tentou chamar – em vão – a atenção da mãe. “Mãe, vou saltar! Olha aqui!”. Como a Imatra não olhou, ele retardou o salto. Eu era o próximo na fila, e comecei a ficar irritado. Por isso, quando o Davi finalmente decidiu pular, eu decidi dar um ‘empurrãozinho’. Nada tão forte, mas o suficiente para que ele desse uma cambalhota no ar, e caísse de cabeça no chão. Fim da noite!

Nesse ponto, minha memória ganha um novo espaço em branco. E retorna apenas dias depois, para um breve diálogo. “Mãe, o que é traumatismo craniano?”, perguntei. “É como se o Davi tivesse rachado a cabeça, Julio”, ela respondeu. “Mas agora ele já está bem, não vai morrer. E sabe o que ele disse pra Imatra? Que ele só caiu porque você o empurrou!”. “Não, mãe. Não fiz nada, eu juro!”.

Enfim, o Davi sobreviveu. E graças a minha resposta rápida, escapei de levar umas palmadas.

Mas anos mais tarde, não teve jeito.

Aos 7 anos, eu tinha ciúme do meu irmão, pois ele sabia desenhar, e eu não! Certo dia, descobri um símbolo que eu conseguia reproduzir perfeitamente. Era minha chance de provar que eu também tinha esse dom. Só faltava um lugar para desenhá-lo, que chamasse a atenção.

Após pensar um pouco, decidi. A ‘tela’ da minha ‘obra-prima’ seria a boneca da minha irmã. A principal delas. Com a caneta em mãos, desenhei aquele símbolo duas vezes: uma na testa e a outra na perna da boneca. Era simples. Bastava fazer uma espécie de cruz e, em cada uma das quatro pontas, fazer outro risco, sempre para o mesmo lado.

Obviamente, minha mãe não gostou da minha ‘veia artística’. Apanhei, e muito. Ela me bateu por ter marcado, para sempre, a boneca preferida da minha irmã. E também me bateu pelo símbolo que eu havia desenhado. Quanto à boneca, fui réu confesso. Aceitei as palmadas. Mas quanto ao símbolo, não. Afinal, que criança, aos 7 anos de idade, sabe o que significa uma suástica? Eu nem sabia o que era o nazismo!

Certas desculpas acabam com o tempo. Aos 14 anos, eu já sabia o que era o nazismo. Também já conhecia o significado da suástica. Mas, mesmo assim, ainda era capaz de provocar pequenos ‘holocaustos’. Era uma época de desentendimentos entre eu e a Rose, que trabalha em casa há 15 anos. E percebi que, todos os dias, ela tirava minha garrafa com água da geladeira, para colocar no lugar a mamadeira da filha dela, a Joyce – na minha cabeça, um ato para me provocar.

Eu precisava agir, e fui rápido. À noite, abri a mamadeira e despejei, no leite, um pouco de pimenta. Não a pimenta em si, mas o óleo dela. E devolvi à geladeira.

Pela manhã, na escola, fui contar minha façanha para meus amigos. “...daí, quando ela for provar o leite, pra ver se está quente, vai tomar toda a pimenta!”. Foi aí que um dos meus colegas me alertou: “Julio, se o leite está na geladeira, é óbvio que não está quente. Ela vai dar direto para a filha”. Entrei em pânico. “Se a menina não tem nem 2 anos, você vai matá-la!”, ele completou, aumentando meu desespero.

Corri como um louco para o orelhão da escola. Liguei para casa, mas ninguém atendeu. “Caramba, já são quase 10 da manhã. A essa hora, a Joyce deve ter tomado o leite! Devem estar todos no hospital”, pensei.

Felizmente, não foi isso que aconteceu. O óleo da pimenta não se misturou ao leite, e quando a Rose pegou a mamadeira, viu que tinha algo errado. A Joyce estava salva. E eu levei apenas uma bronca – aos 14 anos, as palmadas já eram coisa do passado.

Esses três fatos são apenas alguns dos ‘atentados’ que provoquei. De alguns outros, já me esqueci. E certas histórias, como a de quando bombeiros e polícia foram chamados em casa, por motivos distintos, num mesmo dia, valem um post sozinhas.

Com histórias como essas, vinte e sete anos já se passaram. Nesse tempo, fiz algumas coisas que poderiam ter dado muito errado. Aliás, nunca me perguntei por que não deram. Que tipo de força salvou o Davi e a Joyce? Não sou religioso. Não acredito em anjos. Mas, felizmente, aqueles que protegem as pessoas que estão ao meu lado são muito – mas muito – fortes!

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